domingo, março 11, 2007

...e o abuso das palavras

in: Vida Simples encontrei o seguinte texto:

'Ecologia poética
Salve uma palavra antes que morra no senso comum
por Fabrício Carpinejar


"Como pensar em ecologia sem incluir a preservação das palavras? E com a ecologia das palavras, quem se preocupa? E os lençóis subterrâneos da fala que são contaminados pelo sarcasmo, pelo cinismo e, sobretudo, pela indiferença, quem cuida de sua prevenção?
Corremos o risco de perder a natureza quando deixamos que a linguagem fale em nosso lugar e não mais falamos por ela. Quando somente transferimos a responsabilidade de dizer e de nomear pelo ato de repetir.
Não é o comportamento que condiciona as palavras. Mas as palavras formam o comportamento. As palavras são o comportamento. Somos palavras.
De que adianta separar o lixo seco do orgânico se não separamos a linguagem orgânica da seca em nossa rotina? E a coleta seletiva da língua, onde fica?
De que vale cuidar do desperdício de água se não cuidamos também do desperdício de linguagem?
Não será igualmente criminoso usar palavras desnecessárias, sem entusiasmo, sem força de vontade, sem alegria? Por descaso ou por descanso. Para ser compreendido e não pensar. Pela pressa, sendo que a pressa aumenta o esquecimento, inibe a lembrança.
Por dia, quantas palavras são reproduzidas desprovidas de sentido? Lançadas na terra como latas de alumínio, que demoram mais de um século para se decompor.
Um lugar-comum é tão poluente quanto pilhas e baterias do celular. Expressões que nada têm de pessoal, que não permitem a descoberta ou o deslumbramento, estancam a circulação do afeto. Cessam o gosto de falar. Interrompem o gosto de ouvir.
Quantos fósseis são abandonados no cotidiano do idioma, quantos verbetes esperam sua chance de tratamento no aterro sanitário do dicionário? Será que não viramos fantasmas se portamos uma língua morta?
Poderíamos latir, poderíamos miar, poderíamos uivar, tudo isso é ainda comunicação. Mas falar não é somente comunicar, é se comprometer com a direção do timbre.



Palavras são de vidro. Palavras são de metal. Palavras são de plástico. Palavras são de papel. Não se pode colocar todas com o mesmo peso, no mesmo destino. É preciso discerni-las. Uma criança me entenderia.
Tolerância, por exemplo, é de vidro. Reboa por dentro. Faz volume antes de acabar. Não pode ser jogada fora, pois levará milhões de anos antes de virar pó.
Respeito, por sua vez, é de metal. Inteiriça. Difícil de quebrar. Fala-se de uma única vez como uma lâmina.
Condescendência é de papel, o acento vai lá no fim, suscetível aos rasgos da tesoura e das mãos ansiosas. Soletre, veja, imagine. Deite a voz, não fique de pé.
Assim como reciclamos o lixo, as palavras dependem da renovação. Mudar a ordem, produzir significação, exercitar gentilezas, valorizar detalhes. Não deixá-las paradas, desacompanhadas, viúvas.
Talvez seja daí minha incompetência em me desfazer do arranjo de rosas que recebo no aniversário de casamento. Desligo as pétalas do miolo e espalho as rosas nos livros. Fazem sombras para as frases.
É poluente dizer ao filho “nem se parece comigo” para ameaçá-lo. Uma convenção a que a maioria recorre para se livrar do cuidado, sacrificando um momento de particularizar sua experiência paterna e materna. Por que não procurar afirmar “você se parece comigo mesmo quando não se parece”?
Ou há algo mais solitário e desolador que resmungar “eu avisei” para sua mulher quando ela erra? Mostra que já a estava condenando antes de qualquer resultado e atitude. Em vez de cobrar, por que não compreender? Transformar o lixo hospitalar (sim, corta-se um braço dela com essa sentença) em adubo de frutas com a simples concisão de “a gente resolve”.
São períodos postiços, artificiais, fingidos, que corrompem a respiração. Ao encontrar um colega antigo, logo nos despedimos: “Vamos nos ligar?” Isso significa o contrário, não vou telefonar nos próximos três anos.
Até que ponto não se empregam palavras para se esconder o que se quer, para disfarçar, para ocultar? Quantos sinônimos para não dizer absolutamente nada. Para se afastar do que realmente se desejava declarar. Foge-se da palavra certa pela palavra aproximada. Uma palavra vizinha não mora no mesmo lugar da verdade.
Palavra é sentimento. Mas – cuidado – as palavras não podem sentir sozinhas.
Palavra é poder. Ao esgotar seu significado, esgotamos nossa permanência.
"

------
Encontrei neste artigo exactamente o que eu penso. Actualmente fala-se tanto, usam-se tantas palavras, sobretudo através dos media, em discursos, em artigos, etc., mas são palavras desprovidas de sentimento e significado.
E com o tempo nós vamo-nos apercebendo disso e aprendemos (para preservação da nossa sanidade mental e intelectual) a dar o respectivo desconto ao noticiário da televisão, ao discurso do ministro, á notícia no jornal, á conversa telefónica, á conversa ocasional na rua.
De tal modo que já não se respeita a palavra, nem o próprio, que a proferiu...
Ainda hoje li em 'a barriga de um arquitecto' sobre o discurso fechado que os arquitectos fazem sobre as suas obras.
E quantas memórias descritivas de projectos, tenho que ler e reler, para a frente e detrás, e acabam por não me dizerem nada a não ser um intrincado de palavrões estranhos e sem sentido, que me levam a crer que devo ser uma ignorante que não entende o que ali está escrito. (espero que não digam o mesmo das minhas, rs)

Uns porque na realidade não têm nada a dizer, outros porque não devem querer ser contraditos, assim se vão usando e abusando das palavras.

E por outro lado sente-se tanto a falta de uma 'conversa'...

Vamos conservar o valor das palavras, tal como qualquer outro bem que nos é essencial!

2 comentários:

Mila disse...

Crix Maria!!!

Será que andam todos a aprender discurso político?...Falam, falam e nã dizem nada.
(Vê o email)

ContorNUS disse...

Gostei do post.Já conhecia o texto.Obrigada pela partilha.Fica o convite a conhecer o meu blog.